Por Flávia Fontes Oliveira
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Patrícia Otto | Foto: acervo da artista |
Certo dia, entre uma e outra aula, uma aluna, do alto de seus 11 anos, disse a Patrícia Otto, professora da Escola de Dança do Teatro Guaíra, com a ênfase típica da idade, que gostaria de se tornar “a melhor bailarina do mundo”, mas, para isso, precisaria de sua ajuda. A ousadia da aluna a divertiu por um instante, depois “caiu a ficha”: ficava claro para ela, ali, a importância de seu compromisso e sua responsabilidade como professora.
Patrícia tem uma longa ligação com a Escola do Teatro Guaíra. Foi formada pela mesma escola e, desde 1995, é professora e coreógrafa da mesma instituição. De 2000 a 2005, assumiu ainda o papel de diretora e coreógrafa do Projeto Pré-Profissional do Teatro Guaíra, grupo premiado em diversos festivais. Graduou-se também em Dança pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (curso que atualmente é da Faculdade de Artes do Paraná) e se especializou em Consciência Corporal – Dança na Faculdade de Artes do Paraná.
Tem sede de conhecimento e entende a formação do bailarino de modo amplo: do entendimento do corpo ao conhecimento em diversas áreas. Por isso, prefere chamá-los de cidadãos. Fez aulas fora do Brasil, nos Estados Unidos e França, com professores como Floriane Blitz, Andrej Glegolski, Christian Poggioli, Sergei Soloviev e Jacqueline Fynnaert (barre à terre), mas cita como sua grande mestre Carla Reinecke, com quem trabalhou por 15 anos, primeiramente como aluna e bailarina, mais tarde como sua assistente. “Essa convivência foi de grande relevância na formação da profissional que sou hoje”, diz.
Para completar, também é diretora e coreógrafa do Otto Studio Art.
Com esta entrevista, a Revista de Dança continua a série de conversas com professores-formadores do Brasil. E eles têm muito a falar.
Você é professora de dança na Escola de Dança do Teatro Guaíra. Gostaria que contasse um pouco de seu dia a dia como professora.
Patrícia Otto: Tenho o privilégio de ser professora da Escola de Dança do Teatro Guaíra há cerca de 20 anos, uma instituição de ensino profissionalizante em dança. Pude vivenciar todos os níveis da escola, desde a iniciação ao balé até o aperfeiçoamento, acompanhar o desenvolvimento de cada fase do aluno. Fui me transformando e encontrando minhas “crenças”, meu caminho para orientar os jovens neste universo da arte.
Atualmente trabalho com os níveis intermediários e adiantados e tenho uma paixão especial em trabalhar a dança com rapazes. Não se trata de uma regra, mas a maioria deles vem de uma história de luta, preconceitos, barreiras de todos os tipos, mas também carrega consigo uma sede de vida, de aprendizado, dispostos a se dedicar totalmente nessa caminhada e isso me encanta.
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A Bela Adormecida, remontado pela Escola de Dança do Teatro Guaíra
Foto: acervo da artista |
Como é sua relação com os alunos?
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Morgana Cappellari no solo Ne me quitte pas, de Patrícia Otto
Foto: Cayo Vieira |
Patrícia: Trata-se de um lugar comum, mas faço parte das pessoas que acreditam que não escolheram a dança, mas, sim, foram escolhidas por ela. Da mesma forma, tive a sorte de trabalhar com alunos/bailarinos que me desafiavam todos os dias. Tive uma aluna que, no “alto dos seus 11 anos”, sentada numa cadeira (sem ainda alcançar o chão com os pés), disse-me que precisava trabalhar muito, pois queria ser “a melhor bailarina do mundo”, conhecer o mundo através da dança, e olhou para mim e disse: “eu dependo de você para isso, você pode me ajudar?”. Acredito que naquele momento entendi e aceitei a minha responsabilidade como professora. Como ela, outros tantos alunos me fizeram encontrar caminhos para desenvolver o talento que cada um tinha, mas que precisava ser lapidado. Todas essas situações que a vida me apresentou e apresenta todos os dias me conduziram a um caminho de muito estudo, não apenas da técnica masculina, por exemplo, mas também das questões psicológicas que envolvem o trabalho.
Independentemente da técnica que trabalhamos, sempre tem um ser humano. E, no meu dia a dia como professora, é isso que me inspira. Que me desafia. Como posso contribuir para que esse artista entenda seu corpo, saiba o que está fazendo e, principalmente, como está fazendo. Encontrar maneiras para trabalhar com adolescentes que vivem uma velocidade tecnológica absurda, mas que, para alcançar seu objetivo, seu sonho, o que quer que desejem com a dança, precisam ficar horas numa sala de aula estudando e entendendo seu corpo, o mais perfeito computador já criado. E, principalmente, ser feliz com tudo isso.
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Black and White, de Patrícia Otto,
com Daniel Siqueira | Foto: Cayo Vieira |
Como são as preparações para estas aulas?
Patrícia: Sempre procuro não ficar presa apenas à técnica que estou trabalhando. Encontro em outros lugares informações que me auxiliam muito no conhecimento do corpo. Acredito que o bailarino precisa de outras imagens para encontrar seu caminho interno para executar um movimento. Por exemplo, um tour en l’air ou uma pirouette en dehors: ficar repetindo um milhão de vezes o mesmo movimento não vai fazer com que ele aconteça. Se conseguir, com certeza terá levado muito mais tempo. Mas pensar o corpo, o porquê não acontece, o que fazer para se reorganizar internamente, a energia que envolve esse corpo tridimensional e a energia que existe dentro dele, como essa mente que vai executar esse movimento está presente, enfim, fatores importantes que não podem ser deixados de lado.
Para isso busco beber em fontes como Pilates, Laban, Klauss Vianna (1928-1992), Bernardo de Rezende (Bernardinho, técnico de Vôlei), Flavio Sampaio e poderia citar outros tantos das mais diversas áreas que me fornecem combustível para criar/recriar maneiras de trazer o melhor de cada um todos os dias. Inclusive o meu melhor.
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Em seu principal papel, professora. Foto: acervo da artista |
Qual o papel de um bom professor?
Patrícia: Em primeiro lugar é preciso educar – para a arte e para a vida. Existe a educação que é de casa (hoje um pouco esquecida), mas não é a essa que me refiro. Educar para saber lidar com as situações que a vida oferece. Respeitar o outro. Fazer com que os jovens entendam que não existe o errado, existe o diferente. Ensinar a não desprezar o trabalho do outro. Por isso, acho importante os festivais de dança, por exemplo. Competir para conseguir o primeiro lugar para ele ou para a escola não pode ser o objetivo. É importante participar para conviver em grupo, ver o que acontece no mundo da dança, adquirir experiência de palco, lidar com a adrenalina no momento da apresentação, aceitar que às vezes se ganha um troféu, outras não, mas que você sempre ganha quando faz o que ama com responsabilidade, paixão, com prazer. Isso é educar.
Outro ponto é a necessidade de o professor estudar sempre. Mostrar também ao aluno a importância da informação teórica como ferramenta complementar para o desenvolvimento da técnica e da expressividade.
E, por último, porém não menos importante, é ter prazer em trabalhar com os mais diversos tipos físicos. Numa sala de aula, você se depara com um grupo heterogêneo e, para mim, isto é uma riqueza. Mas também um grande desafio. É responsabilidade do professor não apenas perceber o que cada um tem de melhor e lapidar, mas também instigá-los a buscar o seu melhor.
Na sua opinião, como é a formação no Brasil? Os pontos positivos, os negativos, as diferenças.
Patrícia: Uma coisa interessante no Brasil é que não ficamos presos a uma escola ou a uma técnica específica. Acredito que, quando se transita por diversos universos, você tem a possibilidade de experimentar e escolher o que funciona mais para o seu corpo, desde que seja bem orientado.
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Montagem de La Bayadère, na Escola de Dança do Teatro Guaíra
Foto: acervo da artista |
Outro ponto importante é a existência dos cursos superiores em dança. Neste tópico encontro pontos positivos e negativos. Os cursos proporcionam uma informação diferenciada que pode complementar a formação do bailarino principalmente no que está relacionado à docência e à pesquisa em dança, isto é positivo. Vejo como negativo achar que somente quem tem formação superior é detentor de maior conhecimento. Existem grandes profissionais que não possuem um diploma de nível superior e são responsáveis pela alta qualidade da dança em nosso país. Volto à questão educacional: é preciso respeitar a história e os profissionais que a fizeram.
Como professora e coreógrafa, o que chama atenção em um aluno? E o que faz dele um artista?
Patrícia: Sem dúvida nenhuma a sede de vida, o brilho nos olhos. Quando estou assistindo a uma aula ou a um espetáculo, dando cursos, coreografando, às vezes tem aquele bailarino que parece ter um ímã. O meu olhar tenta sair dele, mas é impossível. Uma vontade de olhar e olhar de novo, um “querer mais”. E, para mim, isso só acontece com quem é artista de alma, tem vocação. Já tive alunos com excelentes tipos físicos, mas que eram apenas isso, não aconteciam. Por outro lado, já trabalhei com outros que não eram tão favorecidos fisicamente, mas tinham uma garra, uma felicidade em dançar, um brilho especial que conquistaram seu espaço e seus ideais. Isto é vocação. Quando existe a vocação e o talento físico, é perfeito.
Agora uma coisa é certa: ter uma boa cabeça para saber fazer as escolhas certas é essencial. Se não para mim não vale a pena. Dedico todo o tempo e conhecimento aos meus alunos, mas se percebo que ele está fazendo escolhas erradas (e isso inclui drogas, atitudes, etc) e percebo que ele não quer sair deste caminho, mesmo recebendo toda a orientação necessária, nossa história termina ali. A ética e a dignidade fazem um artista ser completo.
Qual maior prazer para um professor?
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Natural, de Patrícia Otto,
com Ana Roberta Teixeira
Foto: acervo da artista |
Patrícia: Existem vários aspectos prazerosos. Quando você percebe que um aluno está tentando fazer o que você orientou, dedicando-se, atingindo objetivos que ele achava inatingíveis, a felicidade desta conquista, isso é maravilhoso! Acompanhar o amadurecimento do corpo e de um ser humano é muito bom! Ver um grupo de jovens se dedicando nos dias de hoje à arte, é o que me motiva diariamente! Vê-los, depois de anos de convivência, tornando-se boas pessoas e saber que contribuí de alguma forma para isso, me faz ter a certeza de que faço a coisa certa!
Você tem algum sonho? Qual?
Patrícia: Nossa, tenho! Primeiro gostaria que a dança, a cultura em geral, fosse mais valorizada em nosso País! Mas isso todo artista deseja. Mas meu sonho é ter possibilidade de ajudar mais os alunos que não possuem condições financeiras para se dedicar integralmente à dança. Um lugar para alojá-los, com alimentação, estudo, enfim, uma instituição onde eles possam ter tudo o que é necessário para ser um grande artista e um grande cidadão.
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Seu aluno Daniel Camargo, em Dom Quixote
Foto: Amir Sfair Filho |
Se pudesse, o que mudaria na formação no Brasil?Patrícia: Gostaria que todos tivessem condições para realizar seu trabalho com dignidade. Que a formação estivesse caminhando lado a lado com a informação, o que nem sempre acontece. Acredito que uma formação mais completa não daria para o mundo apenas artistas de qualidade, mas sim “artistas-cidadãos” de qualidade. E quando digo formação mais completa me refiro à filosofia, à psicologia, à cidadania. Mas acredito que estamos num caminho bem interessante.
Você também é coreógrafa. Como consegue unir as duas formas de trabalho?
Patrícia: Não acho que meu processo de criação esteja muito vinculado ao meu processo de aula. Nas aulas direciono minhas energias para auxiliar meu aluno a fazer descobertas, (re)descobrir seu corpo. Quando coreografo é outro momento. Às vezes, preciso coreografar algo já definido – é para ser assim e pronto! Outras vezes, tenho a oportunidade de criar com total liberdade, seja de tema, de movimentos. O que existe em comum é que a pesquisa, seja ela qual for (de corpo, bibliográfica, musical, um passeio na rua...), está sempre presente. O pensar a dança! Muitas vezes buscando soluções para a “coreógrafa”, encontro a resposta que a “professora” buscava e vice-versa. Sou privilegiada em trabalhar para uma instituição que me possibilita ser as duas coisas (e outras tantas)! E, principalmente, uma instituição que confia no meu trabalho.